domingo, 19 de junho de 2011

Justiça

Perfil de nossos presidiários
JAIME SAUTCHUK(*)
O Brasil tem, hoje, cerca de 430 mil presidiários, que superlotam presídios de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Mas, de um modo geral, são bagrinhos. Pessoas que poderiam ter penas mais brandas ou cumprirem suas punições em regime semi-aberto, mas não conseguem isso.
São poucos os grandes criminosos que estão ou que ficam presos, mesmo quando condenados, o que é raro, pois a justiça é que faz a peneira. Os colarinhos-brancos, então, são raridade nos presídios.
Na prática, o pobre não tem acesso a advogados, pois os defensores públicos ficam escondidos e os particulares ficam muito caro.  As sedes dos fóruns Brasil afora são os prédios mais imponentes das cidades. O cidadão comum tem medo de entrar e, quando tenta, é barrado na porta.
Assim, é vedado o acesso à própria justiça. E aí os juízes mandam ver, condenando pobres coitados que nem defesa têm a penas severíssimas. Nas prisões, mesmo em condições degradantes, custam caro aos cofres públicos. É a dura realidade.
Um estudo no âmbito do Ministério da Justiça revela o perfil do brasileiro (homem ou mulher) que está enjaulado. O estudo não é estatístico, por isso não revela os números exatos. Mas classifica os detidos pela ordem de quantidade em cada categoria. A classificação segue esta ordem:
Assassinatos. A maior parte da população carcerária de hoje está presa por assassinato. E o mais interessante é que seus crimes foram, na maioria, cometidos na esfera familiar, entre parentes e amigos. E pior: a maior parte por motivos fúteis, como discussões sobre pequenas quantidades de dinheiro, suspeita de traição na vida sexual, conflitos de propriedade (um carro, geladeira ou bicicleta) ou até mesmo por causa de um pedaço de carne no churrasco de fim de semana. São incríveis as razões que levam ao assassinato, muitas vezes reforçadas pelo uso de álcool, fuminho ou pó, que servem como combustível para o descontrole;
Crimes comuns. São furtos, assaltos de esquina ou a clientes de caixa eletrônico, agressões em brigas familiares, de vizinhança ou em logradouros públicos, como bares. Também o porte de quantidades maiores de droga, que caracterizam o tráfico, mas que está em mãos de usuários. E, ainda, com forte presença, a falta de pagamento de pensão de família;
Crimes qualificados. Entre estes, os mais comuns são estelionato e assaltos a bancos ou estabelecimentos comerciais, mas praticados por pessoas ou grupos isolados. Não fazem parte do chamado crime organizado.;e
Crime organizado. Estes são poucos entre os presidiários, mas muito poderosos, mesmo quando presos, pois têm formas de manter controle da situação. E desfrutam de regalias nos presídios. Corrompem ou coagem os agentes carcerários e são auxiliados por advogados ligados ao crime, mas que têm passe-livre para entrar e sair de unidades prisionais.  Os presos líderes de organizações como o PCC e tantas outras, que controlam grandes redes de tráfico de drogas, contrabando de cigarros e todo tipo de produtos, inclusive armas, tráfico de mulheres e crianças para prostituição, adoção ou mesmo para uso de órgãos em transplantes.
Ou seja, as autoridades sabem qual é a situação. E sugerem que o caminho de mudanças está na esfera judicial. Agora, é só começar.

(E atenção: nos próximos dias entro com nova série de artigos sobre o Programa Espacial Brasileiro. É 10.)

sábado, 11 de junho de 2011

Hobsbawm e o Brasil

JAIME SAUTCHUK (*)

Esse britânico Eric Hobsbawm, o mesmo que segue sendo uma referência para o pensamento marxista mundo afora, tem importante contribuição para o entendimento da história do Brasil. A começar pela sua tese de doutorado, sobre o que ele classificou de “bandidos sociais”, em que incluiu o nosso Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.

Eu tive a sorte de conhecê-lo, muitos anos atrás, e com ele conversar durante não sei quantos minutos, mas que foi um encontro que guardo como uma eternidade até hoje.

Hobsbawm sempre trocou figurinhas com os chamados “marxistas americanos”, como Paul Sweeze, Paul Baran, Leo Huberman e uma resma de outros que marcaram um período do pensamento de esquerda no mundo. É uma corrente que ainda mantém permanente debate marxista nos Estados Unidos e mundo afora, sempre bastante atualizado.

Em seu livro “Primitive Lebels” (Rebeldes Primitivos), Hobsbawm parte de bandidos europeus, mas recorre a exemplos de várias outras partes do mundo, inclusive Lampião. Seu interesse pelo caso brasileiro era tanto que ele orientou um discípulo seu a fazer sua tese de doutorado sobre o cangaço nordestino.

Esse seguidor é o americano Billy Jaynes Chandler, que passou oito anos no Brasil e escreveu, entre outros, o livro “Lampião – o rei dos cangaceiros”, obra indispensável para quem quiser entender esse aspecto da nossa história. Ou mesmo nossa história inteira.

Temos, por aqui e mundo afora, um monte de porcarias escritas sobre Lampião e sobre essa importante manifestação social que é o cangaço. Mesmo Luis da Câmara Cascudo, em seu exuberante “Dicionário do Folclore Brasileiro”, apresenta uma concepção um tanto desfocada, vista no olhar da classe dominante.

Cascudo até percebe o caráter social do cangaço, mas, ao citar nomes de cangaceiros famosos, como Brilhante e Lampião, entra em divagações que nada têm a ver com a realidade. Diz, por exemplo, que Brilhante era doce com as mulheres, mas que Lampião as agredia e matava. Um absurdo completo.

Lampião sabia ser duro, severo e até violento quando as situações exigiam. Mas no cotidiano era um homem delicado, que carregava consigo uma máquina de costura, na qual confeccionava suas roupas.

É atribuída a ele a criação do chapéu de cangaceiro, baseado nos modelos triangulares dos colonizadores holandeses, só que aplicando couro e subtraindo uma das pontas. É esse chapéu nordestino que a gente conhece.

Além do mais, tinha uma bela companheira, a Maria Bonita, que ele respeitava divinamente. Viveram juntos de 1930 até a morte de ambos, em 38, na famosa matança da Fazenda Angicos, no Sergipe, e suas cabeças foram expostas da escadaria de uma igreja de Piranhas, em Alagoas, às margens do rio São Francisco.

Rio acima, sob a cachoeira de Paulo Afonso, há uma gruta onde o bando de Lampião passou bons tempos, sob a proteção do empresário alagoano Delmiro Gouveia. O próprio Delmiro era um rebelde, pois em lugar de exportar algodão, montou uma indústria têxtil na boca do sertão e sofreu muita pressão, até ser assassinado. Sua cidade hoje tem seu nome.

Essa relação demonstra o estilo diplomático de Lampião, que sabia muito bem quem eram os inimigos do povo. Aliás, essa habilidade dele é mais clara ainda nas suas relações com o padre Cícero Romão Batista, vigário de Juazeiro do Norte, no Ceará.

Em 1924, quando a coluna Prestes iria  passava pela Bahia, a pedido do coronel Floro Bartolomeu (o ACM de então), Cícero procurou Lampião e lhe forneceu armas para que combatesse a marcha. Lampião recebeu as armas (em especial aqueles rifles winchester muito conhecidos dos filmes de cangaço, com muita munição), mas nunca combateu a coluna. Essas armas eram o forte do seu bando até sua morte. Com a bênção do padre.

Mas ele nunca brigou com o político padre Cícero. Este, ao contrário, levou duas irmãs do cangaceiro, ameaçadas de morte no Pernambuco, para morarem nas dependências da igreja de Juazeiro. Elas viveram ali até morrerem.

O casal Lampião e Maria Bonita teve uma filha em 1932, que viveu no cenário do cangaço. Ela teve uma filha, que ‘e o que oficialmente resta da família dos avós. Essa neta, uma jornalista conhecida como Verinha Lampião, cuida da memória da família e do cangaço com muita competência.

Como diz Chandler, para o filho do sertanejo, ser cangaceiro tinha o mesmo significado que para os filhos da burguesia pernambucana havia na pretensão de ser médico ou advogado. E, depois de Maria Bonita, ser mulher de cangaceiro era o sonho maior das mocinhas dos sertões.

Mas, Lampião era, também, compositor (“Mulher Rendeira” e outras) e inventou o xaxado, uma dança separada, em que pode dançar homem com homem, mulher com mulher, batendo e arrastando botas e sandálias no chão. Só não pode haver toque corporal. No cangaço tinha muito mais homens que mulheres, mas era preciso dançar. Daí...

Há, porém, uma infinidade de trabalhos importantes de autores brasileiros sobre Lampião e o cangaço. A começar pelo de Maria Isaura Pereira de Queiroz, que escreveu “Os Cangaceiros”. Ou pelos quatro volumes de Frederico Bezerra Maciel, em “Lampião, seu tempo e seu reinado”, um retrato com rigor científico, que vai fundo nas coisas do cangaço, no estilo de vida e relações sociais daquela gente.

A rigor, contudo, foi Hobsbawn quem retirou preconceitos das análises sobre essas manifestações de anseios de mudanças sociais e econômicas, mas com um viés primitivo.

Ou seja, gente que, mesmo que aparentemente desprovida de base teórica para dar vazão a seus anseios, colocaram em suas ações um sentido revolucionário.

Robin Hood, na Inglaterra, Jesse James, nos Estados Unidos, Janosik, na Polônia e Eslováquia, Diego Corrientes, na Espanha, são alguns dos mais renomados. Mas há exemplos em todos os continentes, em tempos diferentes. Inclusive no Brasil. E aí é que entra a perspicácia de Hobsbawm.

Hoje, já na faixa dos 90 anos, o filósofo britânico ainda escreve muito e ganha destaque na mídia por dar opiniões a governantes e grandes empresários que têm dúvidas sobre o futuro da humanidade.

Mas, sempre consciente de que o verdadeiro bandido não está nos sertões, e sim em gabinetes muito refinados.